A Sandra Alves, que é investigadora do Departamento do Genética Humana do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge – Porto, explica-nos o que é a doença da bebé Matilde, Atrofia Muscular Espinal e como funciona o seu tratamento, a terapia génica.
O caso da bebé Matilde, como todos se devem lembrar, foi notícia em todos os meios de comunicação social. Os pais souberam de um medicamento novo e muito caro e através de uma campanha nas redes sociais conseguiram arranjar dinheiro para o comprar. Pouco depois, o governo português aprovou a utilização deste medicamento e comprou-o para a Matilde e para outras crianças com a mesma doença.
Mas, afinal, que doença tem a Matilde e que medicamento novo e caro é este?
A Matilde tem uma doença chamada Atrofia Muscular Espinhal. Esta doença é muito grave, e acontece porque o corpo da Matilde não é capaz de produzir uma substância que se chama proteína de sobrevivência do neurónio motor. Como o nome indica, sem esta substância os neurónios motores não sobrevivem, vão morrendo aos poucos com consequências terríveis.
Os neurónios motores são as células que fazem com que os músculos se movam. Se precisarmos de mexer um braço, uma perna, a cabeça ou até respirar são os neurónios motores que ordenam aos músculos que o façam. Nas crianças como a Matilde, os neurónios motores vão morrendo e já não há quem “pique” os músculos para que se mexam. Estes, ficam parados, e as crianças não conseguem sentar-se, andar, etc. Daí o nome, atrofia (fraqueza) muscular.
Mas se falta a tal substância (a tal proteína) que é precisa para a sobrevivência dos neurónios motores, porque não introduzi-la no corpo destas crianças?
Essa proteína é feita a toda a hora nos neurónios motores, tal como todas as outras proteínas que fazem parte do corpo humano. Há toda uma maquinaria que consegue ler um grande livro de receitas que existe no interior das células – receitas que nos são transmitidas pelos nossos pais, a chamada informação genética. Esta informação está contida em moléculas de ácido desoxirribonucleico (ADN) e é escrita só com 4 letras diferentes: A, C, T e G.
Às vezes, algumas seções do livro têm gralhas, onde devia estar um G está um T, ou então, faltam algumas letras, por exemplo esta sequência de 5 letras: TTACG. Basta uma alteração destas, tão pequena, para que a mensagem esteja toda errada e a maquinaria já não consiga produzir a proteína que é precisa. É o que acontece com a Matilde.
Então, porque não dar a estas crianças a sequência boa de ADN (ATGGCGATGAG… neste caso, num total de 885 letras) para que o corpo delas consiga ler e produzir a proteína necessária?
Foi isso que os cientistas fizeram, sintetizaram no laboratório a sequência correta a este tratamento chamamos terapia génica - tratar/corrigir o gene).
Depois, para conseguir que esta sequência chegasse ao local desejado puseram-na dentro de um vírus “meio inactivado”.
Porquê um vírus?
Porque os vírus conseguem entrar no corpo humano com facilidade causando doenças (exemplos: gripe, SIDA, covid-19). Portanto, os cientistas quiseram aproveitar essa “boa” característica dos vírus (conseguir entrar nas células do corpo), mas de modo a que o vírus não causasse doença, inativaram-no um pouco.
O medicamento é composto pela sequência correta do gene + vírus inativado e chama-se Zolgensma. É injetado no sangue das crianças com Atrofia Muscular Espinhal e consegue chegar aos neurónios motores onde a proteína passa a ser produzida e a morte destas células é travada.
Se foi possível neste caso, também poderá ser para outras proteínas que estão em falta noutras doenças. Mas nem sempre é fácil. É preciso que muitas coisas corram bem. O vírus que leva a sequência desejada tem de entrar nas células certas e deixá-la lá, a maquinara tem que ler bem essa sequência, a proteína em falta tem de ser feita na quantidade certa e para sempre.
Os primeiros passos estão dados, e é possível oferecer à Matilde e a outras crianças com Atrofia Muscular Espinhal um tratamento mais eficaz para uma doença tão grave. Mas ainda há muito a fazer. Afinal, a ciência está sempre a evoluir e só com essa evolução é que conseguiremos dar uma vida melhor e um futuro a crianças como a Matilde.
A Francisca Coutinho, investigadora no INSA - Ricardo Jorge e que participou no curso “Comunicar Ciência Clara”, escreveu este apelo como texto final.
A Francisca trabalha num projecto de investigação que precisa muito da vossa ajuda. Precisa dos dentes de leite dos vossos filhos, para poder salvar vidas de outras crianças.
Leiam o texto, partilhem e ajudem estas “fadas dos dentes” como puderem.
Se quiserem saber mais contactem-na pelo email: francisca.coutinho@insa.min-saude.pt
A doença
Não deve haver muitas alegrias iguais à de vermos um filho dar os primeiros passos, ou dizer as primeiras palavras. E o melhor de tudo é que essa alegria não se limita a esses momentos: estende-se no tempo e renova-se a cada nova palavra ou corrida.
Agora imaginem que tinham o desgosto (mais do que isso, o desespero) de assistir à perda de cada uma dessas conquistas. Imaginem que, aos poucos, viam os vossos meninos deixarem de conseguir construir frases, ou de dizer palavras que, dantes, sabiam de cor... Que os viam deixar de conviver com as outras crianças e fecharem-se cada vez mais no seu próprio mundo; que se tornavam tristes ou agressivos sem motivo aparente. Imaginem, por fim, que até de andar deixavam de conseguir, ficando presos a uma cadeira de rodas… Tudo isto num lento e doloroso processo para o qual ainda ninguém encontrou remédio.
Este cenário que descrevo, e que parece um pesadelo, é a realidade de alguns pais. É verdade: o quadro assustador que pintei acima, não é mais do que um pequeno resumo daquilo a que os médicos chamam a progressão clínica de um doente com Mucopolissacaridose tipo III. O nome é impronunciável, eu sei, mas traz consigo esta realidade assustadora.
O que estamos a fazer contra essa doença
É nessa doença na qual temos trabalhado ao longo dos últimos dez anos, para tentar arranjar formas de a tratar. Mas como não podemos testá-las logo nos doentes, temos de testá-las em células, depois em ratinhos e, só mais tarde, podemos pensar em testá-las em humanos.
Quando dizemos células estamos a referir-nos aos pequenos blocos de construção do corpo humano. Qualquer órgão é formado por milhares de células – da mesma forma que uma daquelas grandes construções de Lego de que os miúdos tanto gostam, é formada por milhentas peças. Dependendo do tipo de órgão, essas células têm diferentes características. Por isso, é muito diferente ver uma amostra de sangue, ou olhar ao microscópio para o bocadinho de pele que recolhemos após uma biópsia na ida ao dermatologista. No nosso laboratório, recebemos biópsias de pele. Portanto, é nas células de pele dessas biópsias que temos andado a trabalhar, dando-lhes medicação de maneira a perceber se elas melhoram.
Chegados a este ponto, há duas notícias que queremos partilhar: uma é boa, a outra é má. A boa enche-nos de orgulho; a má, de preocupação. E é para tentar ultrapassar essa preocupação que pedimos ajuda.
Comecemos então pela boa notícia: o tratamento está a funcionar! Depois de medicadas, as células da pele dos doentes estão a recuperar características de células normais. Mas, falta a má: aquilo que vemos nas células de pele pode não ser igual ao que veríamos noutras partes do organismo, mesmo que pertencessem aos mesmos doentes.
Portanto, no caso desta doença rara, o que importava mesmo não era estudar as células de pele; era ver se o tratamento funciona nas células do cérebro, porque é aí que está o grande problema. Só que não se podem fazer biópsias ao cérebro!
A alternativa que temos é usar umas células muito especiais: as famosas células estaminais. O que torna estas células tão fora de série é a capacidade que elas mantêm de se diferenciarem. Ou seja, desde que saibamos como ‘incentivá-las’, podemos levá-las, no laboratório, a transformar-se em células especializadas de qualquer tipo de órgão. E isso inclui o cérebro.
O pedido de ajuda
E é aqui que entra o nosso pedido de ajuda. Sim, porque essas células estaminais não existem só no cordão umbilical. Também existem nos dentes de leite dos nossos filhos – dos vossos filhos. Só precisamos que estejam dispostos a ceder-nos um desses dentinhos quando ele cair, de preferência um canino ou um incisivo. Não é difícil. Basta contactarem-nos quando o dentito começar a abanar, para que possamos preparar um líquido próprio e enviá-lo para as vossas casas a tempo. Depois, é só colocar o dente nesse líquido e enviá-lo para o nosso laboratório. Uma vez cá chegado, vamos parti-lo de modo a conseguir retirar as células que estão no seu interior, numa parte mole chamada polpa dentária. Nós, com muito cuidado e bastante paciência, vamos dar-lhes uma série de estímulos que hão-de ajudar a que elas se transformem, aos poucos, em células do cérebro. E vai ser nessas células que vamos testar os tratamentos em que temos vindo a trabalhar para esta doença, para perceber se eles funcionam e se são seguros.
No fundo, somos uma espécie de assistentes laboratoriais da Fada dos Dentes, numa interpretação mais moderna daquela tradição segundo a qual os meninos colocavam um dente debaixo da almofada, à espera da recompensa que chegaria na manhã seguinte.
Esta Fada dos Dentes do novo milénio não vos promete a moedinha debaixo da almofada dos vossos pequenos, é verdade. Mas acho que lhes trará algo melhor: a certeza de que, com aquele dente que lhe oferecerem, poderão vir a ajudar outra criança e os seus pais a ter esperança no futuro. E se há coisa que 2020 nos mostrou a todos é a importância da saúde e o valor da esperança. Poderá haver recompensa melhor?