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Comunicar ciência

Um blogue sobre comunicação de ciência em linguagem clara (antigo "Estrada para Damasco")

A estrada continua a mesma. Só muda o nome.

(O novo nome deste blogue)

26.07.21 | Cristina Nobre Soares

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O caminho por esta coisa de comunicar ciência em linguagem clara era relativamente recente quando dei o nome "Estrada para Damasco" ao blogue. Uma piadola sobre "ver a luz" a caminho de qualquer coisa (e a ligeira sensação de que há alunos que ficam com uma certa vontade de me cortar a cabeça, com o que eu os faço sofrer).
 
Embora a estrada, desconfio, ainda seja longa, o blogue, que começou realmente como uma "private joke", cresceu. Mesmo com todos os soluços da minha indisponibilidade. 
E, convenhamos, já precisava de um nome mais claro...
 
Tudo isto para vos dizer que o "Estrada para Damasco" se chama agora "Ciência Clara". Afinal, estrada a caminho desse chão comum feito de linguagem, é a mesma. Seja lá o nome que lhe dermos. :)

O que podemos descobrir dentro de uma pena?

20.07.21 | Cristina Nobre Soares

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É fácil esquecermo-nos das coisas que não vemos. A menos que a coisa seja um coronavírus e estejamos em plena pandemia. Um grande toque de despertador que este vírus nos trouxe, foi a consciência de que há um mundo invisível aos nossos olhos que pode controlar a nossa vida. Mas este artigo não é sobre vírus. É sobre outra ameaça à nossa saúde que não podemos ver a olho nu. E sobre uma forma surpreendente de conseguirmos ampliá-la.

Todos os dias estamos em contacto com milhares de pequenos inimigos que tendem a acumular-se no nosso corpo. São elementos e compostos químicos, poluentes microscópicos que não podemos ver nem sentir, mas que podem silenciosamente afetar o nosso bem-estar. Há poluentes que sempre existiram no nosso planeta, como o mercúrio expelido pelos vulcões. Outros poluentes foram criados em laboratório, como o DDT, o primeiro pesticida sintético que se tornou famoso pelo seu êxito a controlar insetos. Estamos cercados por mais de 100.000 compostos químicos de uso corrente, mas só conhecemos bem menos de 2% desses compostos. Apanharmos estes poluentes antes que eles nos apanhem a nós pode ser um autêntico jogo da cabra-cega. Sobretudo se estivermos durante muito tempo em contacto com pequenas doses desses poluentes, tão pequenas que são incapazes de causar sinais óbvios de envenenamento.

Só damos por um problema se conseguirmos vê-lo. Foi por notarmos o desaparecimento de muitas aves na década de 1950 que nos apercebemos dos efeitos negativos do DDT. Alertada pela sociedade, a ciência juntou 2+2 e provou que o DDT diminuía a espessura da casca dos ovos e que, por isso, as aves não se reproduziam bem. Como resultado, o uso do DDT na agricultura foi proibido e as aves voltaram a aumentar.

As aves e outros seres vivos que vemos à nossa volta são sensíveis às ameaças que também são as nossas e podem dar-nos pistas para problemas que não conseguimos ver. Por exemplo, predadores como a coruja-das-torres, que se alimenta principalmente de ratos nos campos agrícolas, podem servir de lupa para ampliar os poluentes que poderemos encontrar no nosso prato.

Os predadores comem outros animais que, por sua vez, já comeram outros animais ou plantas. Ao estarem no topo das cadeias alimentares, os predadores acumulam mais os poluentes do que as suas presas. Se uma coruja comer 1000 ratos num ano, vai acumular os poluentes que estavam em todos esses ratos! A isso chama-se bioampliação. E uma forma de medirmos a quantidade desses poluentes é… nas penas!

As penas funcionam como um reservatório para os poluentes que circulam no sangue no momento em que a pena está a crescer. Depois de completamente formada, a pena deixa de estar irrigada e os poluentes acumulados durante o crescimento ficam presos no seu interior. As aves mudam as penas regularmente, o que também é uma forma de eliminar os poluentes que entram no seu corpo.

As penas são mais fáceis de conservar do que o sangue ou outros tipos de amostras que também podemos usar para medir poluentes. Por isso, as coleções de penas guardadas em museus ao longo de décadas permitiram-nos medir poluentes que existiram quando ainda nem tínhamos forma de os analisar.

Hoje, as penas da coruja-das-torres dizem-nos que o DDT e outros pesticidas proibidos há mais de duas décadas ainda permanecem nos nossos campos agrícolas. Dizem-nos também que em algumas zonas do país existem menos destes poluentes do que noutras, o que nos pode dar pistas para percebermos o que ajuda a eliminá-los do ambiente. Sabia que numa pena cabia tanta informação?

Da próxima vez que vir uma coruja lembre-se disto.

 

Autora: Inês Roque, doutorada em biologia e investigadora no LabOr – Laboratório de Ornitologia do MED – Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento da Universidade de Évora. O seu trabalho de investigação centra-se na ecologia e conservação de aves de rapina noturnas (corujas e mochos) e, em particular, na sua relação com o ser humano. O seu fascínio pela comunicação de ciência levou-a a fundar a Ambios Portugal, uma ONG dedicada à difusão da cultura científica e ao envolvimento da sociedade na ciência.