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Comunicar ciência

Um blogue sobre comunicação de ciência em linguagem clara (antigo "Estrada para Damasco")

"Serendipity"

04.08.21 | Cristina Nobre Soares

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Algures nos anos noventa, o Pedro Ochôa Carvalho foi meu professor de Economia Florestal. Quiseram as voltas e a ironia da vida que décadas depois nos voltássemos a encontrar no Instituto Superior de Agronomia. Mas desta vez "online" e com os papéis trocados no curso "Comunicar Ciência Clara".

Este foi o seu trabalho final, sobre serendipidade na ciência:

 

Quando, no invernoso dia 28 de Janeiro de 1754, o cronista e imaginativo coleccionador inglês Horace Walpole escreveu ao seu amigo e correspondente Horace Mann, vangloriou-se de ter inventado uma palavra nova. Não imaginava que a palavra serendipidade, que ele explicava na carta como sendo um divertimento de ocasião, viria a revelar-se um século mais tarde de grande importância na interpretação dos resultados da investigação científica.

Walpole descrevia entusiasmado o achado inesperado de um retrato da Grã-duquesa florentina Bianca Capello pintado por Vasari. Para explicar o significado da palavra serendipidade, como descoberta não planeada mas afortunada de coisas agradáveis. Ou, dito de outra forma, a descoberta de algo que não se procura, essa “sagacidade acidental”, o autor da carta citou o conto de fadas Persa “Os três príncipes de Serendip”.

Serendip é o lugar em que decorre a história, nome antigo da ilha de Ceilão, da Taprobana dos gregos antigos e de Camões nos Lusíadas, o moderno Sri Lanka, “terra resplandecente”. Na história os três príncipes aventureiros são protagonistas involuntários de diversas peripécias em que estão sempre a fazer descobertas que não procuravam, umas vezes por acidente e quase sempre com sagacidade, com engenho e arte… Esta capacidade “astuciosa” fazia com que dessem nas vistas, aparentando possuírem um dom especial, dir-se-ia “mágico”, que não poucas vezes, fez com que as acusações de bruxos e ladrões pendessem sobre as suas cabeças.

Felizmente a conclusão das histórias era o reconhecimento do dom que se devia às suas mentes abertas e a uma capacidade de observação e de associação entre causa e efeito, que lhes permitia considerar várias possibilidades para desfazer enigmas. No final os príncipes eram considerados importantes e merecedores de recompensas extraordinárias. Vislumbram-se aqui os antecessores das histórias de detectives e de ficção científica…

Mas o que tem tudo isto a ver com a ciência e a busca do conhecimento científico? A partir dos anos 70 do século XX começou a generalizar-se o uso da palavra serendipidade para designar o efeito do acaso há muito tempo reconhecido como uma das causas da evolução da ciência. Sabemos que muitas descobertas científicas ocorreram por acaso, entendido este como acontecimento que decorre sem que exista um projecto apontando para objectivos concretos. Veja-se o exemplo da descoberta da penicilina por Alexander Flemming na primeira metade do século XX. É um dos casos mais contados como exemplo da serendipidade na ciência.

Quando uma placa de laboratório com micróbios causadores de doenças ficou inadvertidamente exposta ao ar, Flemming reparou que um bolor que a invadira tinha evitado a presença desses micróbios. Estudando o acontecimento, o cientista concluiu que o bolor chamado Penicillium continha uma substância que baptizou de penicilina. Estavam descobertos os antibióticos. A penicilina começou a ser utilizada durante a Segunda Guerra Mundial inaugurando uma nova era na medicina.

Como vemos, um acidente de percurso transformou-se numa oportunidade devido à sagacidade de Flemming. Reconhecer o acontecimento inesperado, aparentemente irrelevante, como descoberta extraordinária com efeitos práticos requer uma mente treinada, sem preconceitos e a atenção e perspicácia para identificar a descoberta e tirar partido dela (o “dom” dos três príncipes de Serendip). Louis Pasteur escreveu que “o acaso só favorece a mente preparada”.

Carl Sagan dizia que para progredir na ciência “é necessário um equilíbrio entre duas necessidades contraditórias: o escrutínio céptico de todas as hipóteses consideradas e ao mesmo tempo uma grande abertura a novas ideias”. Quer isto dizer que no método científico, o cepticismo procura excluir as hipóteses de explicação de um fenómeno sempre que não se encontrem provas sustentadas na observação e na experiência. São então aceites as explicações que não são negadas pela experiência. A abertura mental a novas ideias permite que se use a imaginação para construir um leque de explicações criativas que se possam transformar em conclusões.

Os cientistas, no seu trabalho de investigação, partem de teorias existentes e através da experiência obtêm resultados (dados) que são agrupados como esperados ou inesperados à luz da teoria que assumiram à partida. A análise dos dados inesperados, identifica causas entre possíveis falhas nos métodos utilizados ou variações ocasionais nos dados obtidos. Quando os resultados inesperados persistem depois de excluídas as causas fortuitas, há razões para procurar novas explicações e, quem sabe, estabelecer novas teorias. Alguns estudiosos afirmam que 33 a 50% das descobertas científicas são inesperadas.

A ciência e a inovação não dependem só de uma acção planeada com objectivos definidos à partida em projectos de investigação. Pode surgir ao virar da esquina, de forma inesperada, quando a busca é dirigida. Os verdadeiros cientistas são “guerreiros empíricos e criadores intuitivos”, combinando a originalidade e abertura de espírito com uma honestidade intelectual que lhes permite ter uma atitude de dúvida permanente e a intuição necessária para não perder coisas importantes que aparecem sem se esperar. Provavelmente é neste “dom”, resultado de mentes treinadas com espírito crítico, de “ver pontes em vez de buracos”, que reside a essência da serendipidade, presente em muitas conquistas da ciência.

 

Imagem: Three Cinghalese Chiefs Waiting for the Prince of Wales at Kandy, CeylonIllustrated London News, January 15, 1876.