Terapia Génica: O estranho caso em que os vírus podem ser “bons”.
O caso da bebé Matilde, como todos se devem lembrar, foi notícia em todos os meios de comunicação social. Os pais souberam de um medicamento novo e muito caro e através de uma campanha nas redes sociais conseguiram arranjar dinheiro para o comprar. Pouco depois, o governo português aprovou a utilização deste medicamento e comprou-o para a Matilde e para outras crianças com a mesma doença.
Mas, afinal, que doença tem a Matilde e que medicamento novo e caro é este?
A Matilde tem uma doença chamada Atrofia Muscular Espinhal. Esta doença é muito grave, e acontece porque o corpo da Matilde não é capaz de produzir uma substância que se chama proteína de sobrevivência do neurónio motor. Como o nome indica, sem esta substância os neurónios motores não sobrevivem, vão morrendo aos poucos com consequências terríveis.
Os neurónios motores são as células que fazem com que os músculos se movam. Se precisarmos de mexer um braço, uma perna, a cabeça ou até respirar são os neurónios motores que ordenam aos músculos que o façam. Nas crianças como a Matilde, os neurónios motores vão morrendo e já não há quem “pique” os músculos para que se mexam. Estes, ficam parados, e as crianças não conseguem sentar-se, andar, etc. Daí o nome, atrofia (fraqueza) muscular.
Mas se falta a tal substância (a tal proteína) que é precisa para a sobrevivência dos neurónios motores, porque não introduzi-la no corpo destas crianças?
Essa proteína é feita a toda a hora nos neurónios motores, tal como todas as outras proteínas que fazem parte do corpo humano. Há toda uma maquinaria que consegue ler um grande livro de receitas que existe no interior das células – receitas que nos são transmitidas pelos nossos pais, a chamada informação genética. Esta informação está contida em moléculas de ácido desoxirribonucleico (ADN) e é escrita só com 4 letras diferentes: A, C, T e G.
Às vezes, algumas seções do livro têm gralhas, onde devia estar um G está um T, ou então, faltam algumas letras, por exemplo esta sequência de 5 letras: TTACG. Basta uma alteração destas, tão pequena, para que a mensagem esteja toda errada e a maquinaria já não consiga produzir a proteína que é precisa. É o que acontece com a Matilde.
Então, porque não dar a estas crianças a sequência boa de ADN (ATGGCGATGAG… neste caso, num total de 885 letras) para que o corpo delas consiga ler e produzir a proteína necessária?
Foi isso que os cientistas fizeram, sintetizaram no laboratório a sequência correta a este tratamento chamamos terapia génica - tratar/corrigir o gene).
Depois, para conseguir que esta sequência chegasse ao local desejado puseram-na dentro de um vírus “meio inactivado”.
Porquê um vírus?
Porque os vírus conseguem entrar no corpo humano com facilidade causando doenças (exemplos: gripe, SIDA, covid-19). Portanto, os cientistas quiseram aproveitar essa “boa” característica dos vírus (conseguir entrar nas células do corpo), mas de modo a que o vírus não causasse doença, inativaram-no um pouco.
O medicamento é composto pela sequência correta do gene + vírus inativado e chama-se Zolgensma. É injetado no sangue das crianças com Atrofia Muscular Espinhal e consegue chegar aos neurónios motores onde a proteína passa a ser produzida e a morte destas células é travada.
Se foi possível neste caso, também poderá ser para outras proteínas que estão em falta noutras doenças. Mas nem sempre é fácil. É preciso que muitas coisas corram bem. O vírus que leva a sequência desejada tem de entrar nas células certas e deixá-la lá, a maquinara tem que ler bem essa sequência, a proteína em falta tem de ser feita na quantidade certa e para sempre.
Os primeiros passos estão dados, e é possível oferecer à Matilde e a outras crianças com Atrofia Muscular Espinhal um tratamento mais eficaz para uma doença tão grave. Mas ainda há muito a fazer. Afinal, a ciência está sempre a evoluir e só com essa evolução é que conseguiremos dar uma vida melhor e um futuro a crianças como a Matilde.
Foto: docwirenews.com